Pedro Schmidt de Oliveira
Nos volumes de Em Busca Do Tempo Perdido, Marcel Proust descreve a memória
involuntária, entre outras formas, quando come um pedaço de biscoito molhado no chá e o
paladar o transporta vividamente à infância em uma mistura inexplicável de sensações etéreas
e conforto abstrato que por um único momento, estendido pela percepção de durar toda a vida,
o faz esquecer o agora e mergulhar em um passado que a edição seletiva da memória
apresenta como inefável e excelso.
Não diferente das madeleines de Proust, certas canções nos remetem a momentos que
há muito se perderam no emaranhado de vivências e preocupações cotidianas que trazemos
na memória e que, por mais que tenham sido corriqueiras à época, surgem despidas de fatos e
adjacências, nos deixando apenas com o sentimento de que nenhum instante daquele cenário
evocado foi menos que perfeito. Falantes, single de estreia da banda Container Blue, faz
magistralmente este traslado para um final de adolescência que beirava o fim do século e tinha
suas típicas dúvidas, angústias e frustrações soterradas por cerveja fria, ambientes insalubres
e bandas muito mais cruas e transgressoras que as que se ouvia nas estéreis programações
das rádios comerciais ou que se tinha acesso em uma era pré-banda larga.
O riff que guia a canção usa de elementos do southern rock setentista e grooves de
guitarra saídos do funk primordial para criar um blues rock conectado ao som de uma época
em que indie não era o nome de um estilo de música comercial e grupos de rock optavam por
ser independentes, o que lhes dava mais espaço para autonomia e criatividade, conceito este
que define perfeitamente o arranjo referente ao revival do rock de garagem minimalista sem
perder o cuidado na produção. É desta combinação entre a malandragem do groove e o
comedimento da distorção que vem a força de Falantes, uma música que faz gingado e
bate-cabeça conviverem em harmonia sob a sempre presente aura acolhedora do blues.
Mas se o ritmo convida à harmonia aqueles que querem dançar e aqueles que só
querem ficar no canto da pista com uma long neck na mão, a letra não é assim tão irrestrita.
Em uma mensagem clara e sincera, o vocalista repele qualquer aproximação inoportuna de
quem pretenda destilar rancores e fofocas enquanto almeja a paz de espírito trazida pelo
passar nem sempre suave do tempo, discurso urgentemente atual em tempos marcados por
uma exponencial necessidade de serenidade e serotonina. Não é imperativo somente ignorar
os falantes e desprezar seus discursos desgostosos, mas também buscar a liberdade
ensolarada em se isolar de quem não respeita o passar do seu tempo.
Por fim deveríamos todos fazer como Proust e seus biscoitos e nos deixar carregar para
uma época em que que nada importava além do bar escuro e enfumaçado em que a banda
tocava sem se importar com o que a moda radiofônica impunha, um tempo em que a diversão
era garantida e ódio e rancor eram palavras ausentes do vocabulário de quem só queria uma
noite de diversão ao som visceral de guitarras e baterias, uma era alcançável através do blues
elétrico de Falantes.
11/01/21
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